
146 itens encontrados para ""
- Perguntas ao meu Tio Poeta
Texto escrito por Géssica Amorim Nascido na Fazenda São Gonçalo, zona rural de Betânia, no Sertão do Moxotó, o poeta, escritor e compositor pernambucano Walmar Belarmino de Souza, desde menino, teve oportunidades, interesses e ambições diferentes das dos seus outros quinze irmãos, filhos de outros relacionamentos de seu pai, José Belarmino. Ainda rapaz, Walmar deixou a fazenda São Gonçalo e se mudou com a sua mãe, dona Dermina de Souza, para a cidade de Sertânia, onde teve contato direto com a música e com a poesia. Cresceu, fez amigos, acumulou referências e se mudou para o Recife. Na capital, ingressou na Faculdade de Direito do Recife e também foi produtor da TV Pernambuco. Por lá, ainda participou de vários festivais de música e poesia, como o Femusic, Pernambuco Música Hoje, Frevança e Recifrevo, do qual foi vencedor em 1990 com o frevo “Bloco da Lama”. Em 1992, foi finalista do Festival da Record com “Maracatucando as dores de Olinda”. Walmar Belarmino era conhecido pela sua preocupação social e pela sua defesa da música pernambucana. Em 1993, lançou o seu compacto ``Rebentando", com as composições “Clareia (uma toada nordestina)”; “ Lua no Céu (baião)”; “Quero, Quero”e "Tô Chegando". As suas canções também foram gravadas por artistas como Alcymar Monteiro, Novinho da Paraíba, Marinês, Trio Nordestino, Nando do Cordel, Flávio José e Cristina Amaral. Como parceiros de composição, teve Wilson Freire, Antônio Amaral e Maciel Melo. Na literatura, Walmar estreou em 1991, lançando o livro “Gonzaga, Fole e Baião - Pinto, viola e Canção”, inspirado na vida e obra do grande Luiz Gonzaga, rei do baião, e na sua convivência com o poeta Pinto do Monteiro. Em seguida, veio o livro de poemas “Canção Rurbana”, lançado em 1996, cujo conteúdo fala diretamente da sua vida no sertão e na capital. O seu terceiro e último livro publicado foi “Estatuto Pé no Chão da Criança Mauricéia”, que apresenta uma crítica à situação da vida das crianças moradoras de rua do Recife à época em que foi produzido e lançado. Refém de algumas frustrações artísticas e amorosas, o poeta se perdeu. Caiu no alcoolismo e na depressão. No dia 14 de outubro de 1997, morreu vítima de afogamento no mar da praia do Janga, em Paulista, litoral norte do estado. Em homenagem a ele, o seu amigo Maciel Melo, cantor e compositor, compôs o sucesso “A poeira e a estrada”. Walmar não chegou a ouvir a canção. Walmar era meu tio, irmão da minha mãe, Maria de Fátima. Mesmo sem um contato frequente com os seus familiares que ficaram no sertão, a história dele sempre fez parte das nossas conversas em família. Eu cresci com essa referência, com a ideia e a imagem de um tio que foi pra longe, escreveu livros, compôs músicas e viveu de maneira livre e mais alegre que nós. Fotos: Géssica Amorim (Acervo pessoal). Mesmo sem tê-lo conhecido pessoalmente, de alguma forma Walmar foi e é uma pessoa presente na minha na minha vida. Há alguns anos, comecei a procurar pelos seus amigos e por pessoas que conviveram com ele para buscar histórias e informações que nos aproximassem mais. Sempre lamentei não ter tido a oportunidade de uma conversa. Tenho coisas para perguntar, para contar, celebrar e pensei em escrever a respeito de tudo isso aqui, como se Walmar pudesse ler o que escrevo e também pudesse me responder de algum lugar. Compartilho as questões: Titio, faz quase dez anos que eu decidi começar a procurar pelo que nunca soube a seu respeito. Fui atrás dos seus amigos, dos seus conhecidos, dos seus romances e até andei por lugares por onde você andou. Só que, de um tempo pra cá, passei a refletir sobre a invasão dessa procura - sim, porque afinal você escolheu ir embora e manter um contato mínimo com os que ficaram por aqui. Queria saber: essa busca te incomoda? Eu tenho permissão para me aproximar? Eu comecei com essa questão porque me era mais urgente, mas quero dizer que a conversa também correrá por outros temas, além dos assuntos familiares que nos envolvem. E, seguindo, queria saber de você sobre os lugares pra onde a música e a poesia te transportaram. Como foi chegar ao Recife pela primeira vez? O que te esperava nesse lugar? O seu trabalho, Walmar, tem muito do sertão que você deixou, das suas memórias, mas também tem muito do que você enxerga ao seu redor vivendo na capital. Dá pra notar uma grande preocupação social em alguns dos seus poemas no Canção Rurbana - que é justamente um produto desses dois universos em que você viveu. O “O Suco do Guri”, por exemplo, aponta essa preocupação social de que falo. O que você via enquanto o escrevia? Alguma situação específica te levou a estes versos? Música, poesia, prosa. Você chegou até a trabalhar com televisão, enquanto produtor da TV Pernambuco. Mas, e o cinema, Walmar? Que espaço os filmes tiveram na tua vida? O que você gostava de ver? Você via filmes? Voltando à questão da minha busca pela sua história, titio, um de seus amigos me disse que você tinha algum incômodo com a sua voz, com o seu timbre. Isso é verdade? Se sim, o que te incomodava na sua voz? Infelizmente, você não chegou a gravar um CD, como tanto quis. Mas gravou o compacto Rebentando - do qual, inclusive, ganhei uma cópia de um de seus amigos de Sertânia. A sua música ficou gravada, eternizada nesse disco. O que isso te trouxe de bom? Quais foram as sensações? A sua partida foi precoce, trágica e nebulosa. Até hoje não sabemos direito como tudo aconteceu. Não sabemos se foi um acidente, se foi da tua vontade. O que aconteceu naquele dia? O que acontecia nos seus últimos dias? Você sentia que eram os últimos? Titio Walmar,
- Tradição x Progresso:
Uma breve análise crítica da representação do Nordeste em A História da Eternidade (2014) de Camilo Cavalcante Thainara Amorim¹ Em 1988, a escritora cearense Rachel de Queiroz escreveu no Estadão um — inadiável! — aviso ao resto do país: “(...) se acostumem a aceitar a nordestinidad”. Mas o que seria essa qualidade ou, talvez, natureza, que ameaça quem não a pertence? Já não é apenas a “mão-de-obra barata, plebe carente das favelas, bóias-frias, serventes de obras, empregadas domésticas” (QUEIROZ, 1988) ou os tantos outros símbolos da miséria excessivamente explorados pelos “olhos tortos da mídia”, mas um povo que vem de solo fértil, que não mais anda, corre. No entanto, desse povo, só interessa o sofrimento, “Se é bom, se é bonito, não dá notícia” (QUEIROZ, 1988). Seria, portanto, a representação do Nordeste na mídia, apenas coisa de colonizador aspirante a herói ou seria, como nas palavras de Mário de Andrade, outrossim, o fascínio pelo “belo horrível”? Afinal, a miséria sertaneja existe - e como existe! Com efeito, o que pode haver de mais nordestino do que a fé, a morte e a seca? Ainda que apenas na mídia e na arte, esses são os fundamentos que, quase exclusivamente, contam o Nordeste. Em A História da Eternidade (2014) de Camilo Cavalcante, no entanto, também o sonho, a poesia e o amor compõem a tal “nordestinidade” tão usada e abusada no cinema. Primeiro longa do, até então, curta-metragista recifense Camilo Cavalcante, A História da Eternidade gira em torno de três personagens femininas que representam três diferentes gerações: Alfonsina (Debora Ingrid), adolescente de 15 anos, apaixonada pelo mar que mora junto do pai com ares de jagunço e mais quatro irmãos e somente no tio, artista e irrevogável sonhador, acha o acolhedor feminino e o incômodo desejo; Querência (Marcélia Cartaxo), mulher de meia-idade que perde o filho e, por consequência o marido e enfrenta o luto, o abandono e o sanfoneiro que peleja “da hora que o sol aparece até a hora que ele se esconde” pelo seu amor; E, finalmente, a mais madura das personagens, Das Dores (Zezita Matos), católica do “pé roxo”, que recebe o neto vindo de São Paulo, apenas para ver revelados certos instintos tão inesperados quanto inelutáveis. Desde a construção das características basilares das protagonistas, até as peças secundárias da narrativa, é evidente que Cavalcante utiliza-se da conhecida mitologia do Nordeste. O filme inicia-se com uma sequência de elementos convencionalmente nordestinos: a árvore monumental, característica da caatinga centralizada na paisagem seca e saturada; o sanfoneiro que, amparado em sua sombra, toca uma melodia sofrida; o menino que mata uma rolinha com um estilingue e guarda o cadáver na bolsinha de palha, provavelmente para comê-lo depois; e o bando de cabras que, guiados pela criadora, invadem a cena. Cessa a sanfona e outro som tipicamente nordestino começa: um cortejo fúnebre entoa “Senhor, Fazei de Mim (Um Instrumento de Tua Paz)”, composta por Darío Julio Gianella Castañé e que se tornou parte do repertório popular. Está completo o teatro! Nada nos causa estranhamento na cena: um desenho demasiado comum da região. À quem assiste, portanto, não restam dúvidas nem quanto à ambientação do filme e nem quanto a forma como tal será representada e as cenas seguintes ajudam a consolidar ainda mais a previsão do espectador: Ao ser abandonada pelo marido, Querência chora, sentada numa pequena mesa de madeira, o ambiente precário ao seu redor e, à sua frente, um copo de água vazio. De repente, ela vira o copo e captura uma mosca. O gesto abrupto parece indicar o tom do resto da obra: é exatamente como o inseto capturado que se sentem os personagens que seguiremos. A segunda heroína nos é apresentada em seguida. Embalados por uma música melosa em inglês, somos guiados pelo quarto de Alfonsina: o porta-jóias e o cisne de cerâmica empoeirados; o velho rádio de pilha por onde passeia outro inseto; uma caixa de madeira com rolos de lã; dois gatos também de cerâmica, uma boneca de porcelana suja, quebrada e nua, ao lado de uma rosa falsa coberta de teias de aranha e, então, quebrando essa sequência de figuras que estão presentes na maioria das casas populares no Nordeste, o mar. Em frente à uma grande colagem que toma grande parte da parede, Alfosina contempla os recortes das paisagens tropicais que sonha em visitar pessoalmente. É justamente no quarto dela, a adolescente romântica e inquieta, que vemos mais nitidamente a dicotomia entre modernidade e tradição, tão simbólica no desenvolvimento de A História da Eternidade. Ora, nada mais regional do que a contraposição entre o sertão e o litoral! Em seu livro A invenção do Nordeste (2011), Durval Muniz de Albuquerque Jr. afirma que essa oposição, que também é abordada em Os Sertões, de Euclides da Cunha, bem como, em vários outros trabalhos artísticos, jornalísticos e acadêmicos, virou um lugar-comum da cultura do país. Oriundo do debate nacionalista, tal conflito fundamenta-se na ideia de que o litoral é essencialmente “colonizador e desnacionalizador”, enquanto o sertão é o mais Brasil entre todos os brasis: O sertão aparece como o lugar onde a nacionalidade se esconde, livre das influências estrangeiras. O sertão é aí muito mais um espaço substancial, emocional, do que recorte territorial preciso; é uma imagem-força que procura conjugar elementos geográficos, linguísticos, culturais, modos de vida, bem como fatos históricos de interiorização como as bandeiras, as entradas, a mineração, a garimpagem, o cangaço, o latifúndio, o messianismo, as pequenas cidades, as secas, os êxodos etc (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011, p.67). Tal qual a cadeia de sentidos do quarto da menina, o sertão é, essencialmente, um conjunto de “imagens exóticas”, que pouco se relaciona com a sociedade litorânea, “É uma ideia que remete ao interior, à alma, à essência do país, onde estariam escondidas suas raízes” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011, p.67). Nesse sentido, no Manifesto Regionalista de 1926, Gilberto Freyre confirma: O Nordeste, que outrora fora considerado “criador e recriador de valores (1955, p.21), torna-se “uma terra apenas de relíquia: o paraíso brasileiro de antiquários e de arqueólogos” (p. 21). Mais adiante, o filme introduz novos personagens que, embora periféricos, são importantes para a montagem da simbologia sertaneja: o pai, os irmãos e o tio de Alfonsina. O primeiro, representa a recorrente figura do “cabra-macho”, filho da bruta realidade do sertão. O último, João (Irandhir Santos), artista incompreendido, revela, ao contrário, a substância cabalística e poética derivada desse mesmo material bruto. Outra dicotomia clássica é, assim, introduzida. Finalmente, ainda dois personagens se opõem na película de Cavalcante: a também protagonista, Das Dores, e seu neto, Geraldo (Maxwell Nascimento). Esse é o que Freyre (1985) descreveu como o “transnordestino”: exilado na Paulicéia, volta à terra natal, mas dela, guarda, com esforço, muito pouco. O jovem de cabelo descolorido, brinco e sotaque paulista, leva no braço uma tatuagem de carcará. A avó, católica fervorosa e símbolo da mãe-guerreira comumente associada ao Nordeste, apesar de estranhar a homenagem, aprova: “Em tu, fica até bonito!” Mas propõe: “Me chama de voinha. Parece que eu regresso prum tempo bom”. Fica evidente, dessa forma, que o diretor não foge dos estereótipos tão presentes no acervo cinematográfico do país. Logo, não admira o fato de que o ambiente em que se passa o enredo tenha seu nome ocultado. Ali é o sertão e ponto. Porém, acredito que essa escolha estilística não seja fortuita, uma vez que os tipos comuns utilizados, são comuns também porque não são absolutamente abstratos: O estereótipo é um olhar e uma fala produtiva, ele tem uma dimensão concreta, porque, além de lançar mão de matérias e formas de expressão do sublunar, ele se materializa ao ser subjetivado por quem é estereotipado, ao criar uma realidade para o que toma como objeto (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011, p.30). Ademais, analogamente ao conflito entre tradição e progresso explorado no filme, Cavalcante flutua entre o experimental e o clássico. Um exemplo desse caráter empírico da obra é o fato de que o penar emocional dos personagens, ainda que muito tenha a ver com o contexto social em que estão inseridos, prevalece inteiramente aos habituais sofrimentos do sertão: a falta de água, o calor, a carência de saúde e educação e o descaso governamental. Nem mesmo Geraldo, o filho pródigo, espanta-se com eles. É inegável que esses problemas existem, estão lá, são gritantes. Mas também outros, mais universais, fazem-se presentes e são igualmente dignos de exploração. Destarte, me parece que abordar tópicos como o cangaço ou a seca no Nordeste não é impreterivelmente incômodo, pois de fato esses são elementos histórico-sociais que fazem parte da experiência nordestina e moldaram a imagem cultural da região. O mal-estar se dá a partir do foco exclusivo em tais problemáticas: quando até os próprios personagens que compõem a diegese fílmica não têm qualquer profundidade narrativa, mas servem, sobretudo, como instrumentos para o desenvolvimento desses arquétipos. Felizmente, esse não é o caso de A História da Eternidade. Em uma das cenas mais desconfortáveis do filme, o pai de Afonsina, Nataniel (Cláudio Jaborandy), despe-se de sua vestimenta de “cabra da peste”, agarra-se aos pés de sua filha — a quem trata de forma seca e autoritária durante toda a história — e implora seu perdão, por ser “um desgraçado”, dando um gosto amargo ao presente que ele mesmo a oferece e a força a aceitar, um forró para comemorar seu aniversário. Das Dores tem uma similar desconstrução no filme: Ao encontrar uma revista de conteúdo escandaloso na mala do hóspede, encontra também algo assombroso dentro de si mesma. A partir de então, tenta em vão apagar a crescente efervescência de seus instintos, rendendo um dos episódios mais impactantes da narrativa, quando a religiosa recorre a um hábito antigo da doutrina católica: o auto-flagelo. A cinematografia de A História da Eternidade também tem um quê de experimental. Os enquadramentos da câmera que centralizam os personagens e os emolduram brilhantemente — por vezes, evocando o cinema simétrico de Wes Anderson — emprestam ao filme outro elemento introspectivo. Os planos amplos do também extenso cenário parecem se contrapor ao claustro dos personagens que o habitam: o artista silenciado que não consegue se desvencilhar do irmão violento, a menina sonhadora que nunca vai ao litoral, a mãe que luta com o luto e a beata que malogra em reprimir sua sexualidade até com o chicote da religião. A título de conclusão, menciono uma das cenas finais da obra: Após finalmente ter seu amor aceito por Querência, o sanfoneiro acorda em sua casa e a procura, sem qualquer êxito. Por conseguinte, tal é a última palavra dita em A História da Eternidade, “Querência”. No nosso vocabulário, o lugar ao qual pertencemos, mas também, como no dicionário hispânico, o querer bem e, talvez, num sentido alegórico, o simples e puro querer. ¹ Thainara Amorim é graduanda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco - Campus Agreste. Referências ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2011. FREYRE, Gilberto. Manifesto regionalista de 1926. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1955. QUEIROZ, Rachel de. A aceitação da ‘nordestinidade’ agora inadiável. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 40, 25 nov. 1988. QUEIROZ, Rachel de. Sob os olhos tortos da mídia. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 43, 17 jun. 1988.
- A morte no cinema de Taciano Valério
Será que a morte pode ser linda, às vezes? A partir das obras de Taciano Valério, que têm como elementos estéticos, características e técnicas marcantes pelo teor dramático e pouco convencional, que evidenciam o movimento, o toque e a textura na hora de construir uma cena, nosso colaborador Thiago Henrique Muniz (@thiagohmuniz), busca transmitir neste vídeo ensaio a atmosfera sensorial dessa estética, a partir de um tema que está presente em toda a filmografia de Valério: a morte. Assista o vídeo ensaio na íntegra: Sinopse: O cinema de Taciano Valério é marcado por um grande apelo à mise-en-scène. Como um hino à gloria dos corpos, seus filmes evidenciam o movimento, o toque, a textura; elementos esses que parecem saltar da tela. E o que seria mais propício a essa estética senão a morte? Este ensaio busca transmitir essa atmosfera sensorial expondo o tema da morte que está presente em toda a filmografia de Taciano. Vídeo ensaio realizado por Thiago Muniz, colaborador da Spia.
- Fabriquetas de jeans e sonhos
A rememoração das lembranças de infância do diretor Marcelo Gomes é contraposta à atualidade do espaço e suas necessidades em “Estou me guardando para quando o carnaval chegar”. É possível avistar uma cidade que parte da ruralidade em direção a industrialização improvisada, um aceno às grandes produções e fábricas que se guliverizam em quintais e garagens, e remetem, de maneira inconsciente, às dimensões da capital do jeans. O processo pelo qual a agricultura e pecuária em Toritama dão vazão à formação de uma indústria é explorado a partir da voz de seus habitantes, intimamente relacionados a esse fenômeno. Essa massa de trabalhadores, que abandonaram o silêncio que era interrompido tão somente pelo barulho dos animais e das ferramentas em contato com o solo em troca do zumbido incessante das máquinas de costura, tem seus anseios expostos a partir dos discursos que se misturam ao som de maquinários de trabalho e sobrevivência. É nesse ambiente caótico de intercessão entre sons estridentes, que cessam somente em momentos de descanso, que se ambienta a narrativa traçada no documentário. A ilusão da autonomia trazida pelas máquinas, que em um primeiro momento substituem animais, e que podem, eventualmente, substituir as pessoas inseridas nessa cadeia produtiva, é o principal fator de reforço às experiências dos trabalhadores da cidade. Explorados na produção de jeans, essas pessoas, sem perspectiva de crescimento fora desse eixo, se empoderam pelo lucro trazido do trabalho contínuo, rotineiro, que reincide em seus cotidianos os movimentos de repetição traçados pelas mãos que costuram pequenas partes integrantes do jeans. Um bolso, uma braguilha e um dia de vida se tecem da mesma maneira: repetição com maior velocidade, seja para que a produção gere mais lucro ou para que a vida passe mais rápido até o seu próximo momento de encanto. O encanto promovido pelo lazer não pode ser encontrado nessa cidade, o ofício é a força motriz desse espaço. Não há restaurantes, bares, piscinas, a vivência é contida dentro das casas, seja nos momentos de trabalho, descanso ou lazer. O lar passa a comportar todas as possibilidades dessas existências. O êxtase que irrompe a existência estática dessa população é encontrado no carnaval, o hedonismo desse feriado é a oportunidade de extravasar as pressões do cotidiano. Esse movimento de desprendimento ao trabalho se manifesta de maneiras múltiplas, há quem venda seus eletrodomésticos, meios de transportes ou faça empréstimos para aproveitar essa data. O que pode caracterizar um protesto à exploração sofrida diariamente, além de renovar os ares daquela cidade, é a preparação que abre alas para as tentativas de recuperar a vida não vivida em 361 dias do calendário, que são possibilitadas até a data limite da quarta-feira de cinzas. O refúgio para distante do barulho das máquinas de costura dá espaço ao ruído branco da cor da espuma das ondas do mar que se dissolvem na areia. Na praia o único som metálico é oriundo das fanfarras que transitam pela cidade. Dentre as cenas filmadas nesse segmento do filme, se destacam as que relatam o descanso em seu silêncio. Cortadas apenas pelos diálogos, ou suas tentativas, que estão banhadas em metalinguagem, falam sobre o próprio descanso, o balançar da rede e o simples fato de deitar-se é assunto de suma importância. O retorno para Toritama ao final das curtas férias é marcado por uma chuva costumeira, se em outras ocasiões esse momento representava o início da temporada mais propícia para as plantações, agora sua simbologia não ultrapassa a de um fato vazio. Não existe tempo conveniente para o jeans, e por mais que as pessoas inseridas nesse ciclo de fabricação sintam-se donas de suas forças de trabalho e também de seus tempos, naturalmente esse aspecto se padroniza: dormir 6 horas diárias e trabalhar o resto do dia com pequenas pausas destinadas às suas necessidades mais básicas, que se puderem, devem ser realizadas na mesma cadeira na qual passam a maior parte de suas horas. “Estou me guardando para quando o carnaval chegar” intui a possibilidade de aproximação das maneiras de exploração de um povo em prol da manutenção de um sistema econômico e nos aproxima da realidade do polo têxtil do agreste em seus aspectos menos aprazíveis. Ele investiga as maneiras como um tecido de cor azul, composto de trama e urdume, se impõe sobre as tramas das vidas de quem o confecciona. Ao final das 1h25 de filme o silêncio da minha sala, impossível de existir em um dia comum de Toritama, em contraste à tela preta, me traz o questionamento: quantas peças de roupa foram produzidas durante esse curto espaço de tempo? A obra de Marcelo Gomes está disponível na Netflix. Ficha técnica: Direção e Roteiro: Marcelo Gomes Produtoras: Carnaval Filmes, Rec Produtores Associados, Misti Filmes. Direção de Fotografia: Pedro Andrade Produtores: João Vieira Jr., Nara Aragão Coprodutores: Chico Ribeiro, Ofir Figuereido, Ernesto Soto, Marcelo Gomes Produção executiva: João Vieira Jr., Ernesto Soto Montagem: Karen Harley Som: Pedro Moreira, João Lucas, Lucas Caminha Música: O Grivo Direção de Produção: Karina Nobre, Luna Gomides Assistência de Montagem: Gustavo Campos Personagens: Leonardo, Francielly, Canário, Velho do Ouro Texto por: Leandro (colaborador da SPIA)
- O Mal Estar na Taberna Minhota
O indivíduo liquidado em EX Mágico, curta Olimpio Costa e Mauricio Nunes. Texto por Lucas dos Santos Silva. O ex Mágico é um personagem que caminha pesadamente, parece carregar um peso nas costas arqueadas; arfando, ele passa apressado pelas ruas e vielas de uma cidade vazia, numa paisagem opressiva de casarões abandonados. Parece fugir de alguma coisa misteriosa enquanto sente cansado o peso angustiante do mundo que o cerca. A animação de Olímpio Costa e Mauricio Nunes é uma adaptação do conto homônimo de Murilo Rubião, que narra a trajetória de um homem que possui um dom compulsório de fazer mágica. O personagem é constantemente atormentado por truques de mágica que brotam ao seu redor contra a sua vontade. Depois de algum tempo trabalhando no circo ele começa a tentar o suicídio mas sem obter sucesso, pois a mágica acaba por salva-lo da morte em todas as ocasiões. Frustrado ele decide se tornar funcionário público após ouvir de um estranho que isso seria como “suicidar-se lentamente”. Durante os 11 minutos de um thriller com elementos surrealistas, que mistura influências de David Lynch com animação americana dos anos 90, a adaptação narra o dia a dia do Ex Mágico na sua rotina monótona de funcionário público em que um homem de meia idade confronta as dificuldades de lidar com as frustrações e amarguras de sua vida. Os cenários hachurados e realistas, com perspectivas fortes e definidas, de casarões e ruas antigas, desenhados por Ricardo Cavani, dão à produção um ar angustiante, ao mesmo tempo que a animação e os personagens caricaturescos carregam o filme com uma natureza onírica. Essa unidade de polarizações nos transportam para dentro do delírio do protagonista. Esse processo de conflito constante entre o eu e o mundo exterior, que se apresenta como uma realidade opressora, é comum na literatura de ficção. Autores como Franz Kafka e o próprio Murilo Rubião fizeram desse dilema sua matéria prima da criação, mas além das artes, um dos campos que mais se debruçou sobre o tema foi a psicanálise. Em um dos seus textos mais conhecidos, O Mal Estar da Civilização, Sigmund Freud destaca esse confronto entre o eu e o mundo exterior como uma parte primordial da formação do indivíduo. Esse processo aparece na nossa vida já no nascimento. “O bebê lactante ainda não separa seu Eu de um mundo exterior, como fonte das sensações que lhe sobrevêm. Aprende a fazê-lo aos poucos, em resposta a estímulos diversos”(FREUD, 1930.pág.17), esses estímulos podem aparecer como estímulos de dor e de desprazer. Como uma forma de se proteger, em um princípio que o autor vai chamar de Princípio do Prazer, o indivíduo acaba separando tudo que pode se tornar fonte de experiências desagradáveis como sendo parte de um mundo exterior, distinto do eu. Nesse sentido o eu se torna o ente desejante e o mundo exterior, a realidade, uma barreira para a realização dessas vontades. Na animação Ex Mágico o personagem surge como um ser pleno de desejo, que é ao mesmo tempo preenchido e atormentado por eles. Já no começo ele aparece fugindo de um perseguidor misterioso, em ruas vazias, e se refugia no seu aposento, onde é confrontado por uma miríade de animais selvagens espalhados pelo seu quarto. A magia surge na sua vida como um impulso que o controla, e é reprimido pelo seu entorno. Ao mesmo tempo, desejo e realidade aparecem de forma opressiva para o personagem. Isso porque em determinado nível ele não consegue separar o mundo exterior do seu próprio eu. Sendo assim, a sua realidade opressora se mistura com seus desejos e visse e versa. Em seus devaneios a realidade é constantemente alterada, em uma visão subjetiva, vemos, através da sua ótica, o papel da sua mesa de trabalho ser preenchido magicamente por seios femininos voluptuosos, enquanto ele comenta sobre seu desejo pela sua vizinha de escritório. Ao mesmo tempo em que assistimos a sua mão se dissolver, somos entrecortados por uma montagem que reforça a monotonia através da repetição constante de cenas. Um dos diretores da animação, Maurício Nunes, destaca a presença dessa ruptura entre o eu e o mundo exterior como um tema relevante tanto na sua adaptação como na obra original de Murilo Rubião, “Uma coisa do conto, que eu sempre fiz essa leitura, é ao fato dele nascer velho; eu dei por mim já velho num espelho de uma taberna. Ele não teve infância, não passou pelas vicissitudes da vida, isso pra mim é nitidamente um processo de ruptura com o racional, ele teve algum problema neurológico que é trazido para o mundo real”. Esse jogo entre realidade e fantasia como um aspecto do delirante foi algo que o diretor Maurício Nunes afirmou ter escolhido trabalhar em sua animação através de um roteiro de ambiguidades, quis dar ao EX Mágico essa natureza de constante incerteza. Como espectador, não sabemos se o protagonista foi sequer um mágico, não temos a resposta concreta do que é real e do que não é, pois nem o personagem tem essas certezas. “Isso foi uma das coisas conscientes, eu não queria deixar claro que foi realidade, suscitar a possibilidade de ele sempre ter sido um funcionário público que entrou em crise, quis uma outra coisa, uma vida artística, mas foi tão reprimido a vida inteira que quando quis aflorar esse outro lado veio como um vulcão”. Esse processo de repressão internalizada, Freud descreve como Mal Estar Civilizatório. Para o autor, a civilização é o que nos afasta da nossa natureza selvagem, é o conjunto de regras implícitas e explícitas que nos permite a convivência social, essas regras nos protege do desejo e das vontades do outro, mas também reprime e nos afasta das nossas próprias vontades. O personagem que nos guia no curta é um sujeito que foi completamente dissolvido por esse Mal Estar Civilizatório, ele é tragado por esse mundo de regras que no filme é representado pela burocracia, no seu ofício de funcionário público. Com a mesma facilidade que as opressões sociais entram em seu eu, o seu desejo se mistura com o mundo a sua volta, gerando uma realidade delirante. Esse delírio patológico faz dele um homem sem forma, que tem o tempo todo sua aparência e seu corpo transfigurado, seja em animais ou em objetos e até figuras disformes. “A patologia nos apresenta um grande número de estados em que a delimitação do Eu ante o mundo externo se torna problemática, ou os limites são traçados incorretamente; casos em que partes do próprio corpo, e componentes da própria vida psíquica, percepções, pensamentos, afetos, nos surgem como alheios e não pertencentes ao Eu; outros, em que se atribui ao mundo externo o que evidentemente surgiu no Eu e deveria ser reconhecido por ele. Logo, também o sentimento do Eu está sujeito a transtornos, e as fronteiras do Eu não são permanentes.” O realizador afirmou em entrevista que não tem familiaridade direta com os textos dos autores de psicanálise, mas que sempre refletiu sobre as relações dos desejos primordiais humanos através de observação e pelo conhecimento direto de outras obras e do seu próprio desejo como homem. Em sua entrevista, ele afirma que muitas das chaves interpretativas da psicanálise foram passadas de forma consciente, mas algumas delas foram inconscientes, como a referência ao desejo do peito materno, além de que a escolha desse tema mais subjetivo na sua obra vem da suas influências de formação no Recife. O diretor do curta Maurício Nunes destacou que a personalidade do seu protagonista foi inspirada em pessoas que conhecia, que passaram por processos parecidos de repressão internalizada e acabaram perdendo seus limites nesse caminho. Além de se inspirar também em pessoas que sempre foram muito livres, fizeram tudo o que quiseram, já que para ele essa liberdade também sufoca, fazendo com que o sujeito se perca no próprio desejo, pois a vida não se resume só ao que o indivíduo deseja, é preciso também que haja um equilíbrio entre o desejo e a realidade. Assista o filme na íntegra:
- A BRODAGEM NO AGRESTE PERNAMBUCANO
Mais do que fazer, a paixão de quem preserva o cinema do Super 8, 16mm e 35mm O cinema pernambucano se caracteriza desde os seus primórdios da década de 1920, como movimento de criação coletiva entre amigos. Nesta época o denominado Ciclo do Recife, foi construído através de produções amadoras, onde a equipe de produção e elenco tinham outros ofícios e presente nas relações, a paixão pela sétima arte e aquele tom de “brodagem”, como bem conceitua a escritora e professora Amanda Mansur, na obra A Brodagem no Cinema Pernambucano, (2014). Tal característica se manteve nos movimentos marcantes que sucederam esse período, como a do Ciclo do Super 8, ocorrida entre 1973 e 1983, como também na retomada de produções profissionais pelos idos de 1985, cujo filme o Baile Perfumado desencadeia em grande estilo um leque de grandes sucessos que torna Pernambuco respeitado no cenário nacional e internacional. A mesma paixão de fazer cinema também contagia um outro público que ama preservar. Em duas cidades do agreste pernambucano, pertinho de Caruaru, encontramos dois apaixonados em preservar a história do Super 8, 16mm e 35mm. Em Bezerros, terra do carnaval dos papangus, terra do artista J.Borges, encontramos Edvaldo Mendonça, um servidor público estadual, músico e amante da sétima arte. Um colecionador de filmes, projetores, equipamentos e materiais de cinema. Edvaldo além de colecionador adora exibir para os vizinhos grandes clássicos nacionais e internacionais em sessões animadas na rua onde mora. Se deslocando mais alguns quilômetros, em Toritama, cidade que se intitula a Capital do Jeans do Brasil, tem no cinéfilo Jadiel, um colecionador de câmeras, projetores e materiais de cinema, que tem de cor a história das salas de cinemas de sua cidade e disponibiliza sempre o seu acervo para exibições em festivais e feiras de conhecimentos escolares. Nossa entrevista mergulha nesse universo apaixonante desses dois broders. Por que colecionar projetores, câmeras e demais materiais de cinema? EDVALDO: Para manter viva a sétima arte, o cinema. Através deste material preservamos a memória cinematográfica, assim como funcionam os museus que mantém a memória da humanidade. Além disso, quando mostramos esses equipamentos para às pessoas, estas ficam maravilhadas, como se vissem algo que vem do futuro, enquanto na verdade, estamos "de volta para o passado". JADIEL: Eu coleciono porque meu objetivo é preservar esse material para que as pessoas possam conhecer e entenderem como eram os primórdios do cinema. Conte-nos sobre sua coleção. EDVALDO: Na coleção em Super 8mm, temos 08 projetores (sendo a maioria de marcas japonesas) algumas adquiridas no Brasil e outras no exterior. Possuímos um acervo de mais de 150 filmes, além de carretéis, cartazes e peças para reposição. Na coleção em 16mm, temos 04 projetores, carretéis e mais de 30 filmes. JADIEL: Minha coleção começou no em 2005 na época apenas com um projetor 16mm nacional da marca IEC, hoje entre projetores, filmadoras, pôsteres, documentos e fotos são um total de mais de cem itens. Existe algum item raro, qual o maior achado? EDVALDO: Em Super 8mm possuímos raros filmes, como os de artes marciais, produzidos por uma empresa alemã nos anos 80. Enquanto em 16mm, podemos ver, uma raridade de 1912, que é o 1° filme da Paixão de cristo. Além de um raríssimo filme de minha cidade (Bezerros), que é um documentário de 1938. JADIEL: Um item bastante raro na minha coleção é um projetor Parisiense dos anos 50, trata-se de um equipamento que projeta filmes em 8mm, além disso um equipamento bastante raro de aparecer em sites de vendas e em coleções. Já o meu maior achado foi uma filmadora francesa da marca Pathé baby, essa filmadora utilizava as raríssimas e extintas películas 9.5mm. De onde vem essa paixão? EDVALDO: Essa paixão vem de criança, quando ao entrar pela 1°vez em um cinema, vi um foco de luz vindo do alto em direção à tela; que parecia uma mágica, onde uma luz distante, produzia imagens em movimento... Mas tarde fiquei sabendo, que eram projetores mecânicos com carretéis de fitas, girando numa velocidade sincronizada, de 24 quadros por segundo. Foi na adolescência que consegui adquirir meu primeiro projetor de Super. 8mm e alguns filmes, que com o passar dos anos foram aumentando o acervo. JADIEL: Essa paixão começou na minha adolescência quando eu vi um projetor de filmes que ficava de exposição numa locadora de filmes aqui na minha cidade. Edvaldo, nos conte como é essas exibições de filmes em sua rua. Em várias oportunidades cheguei a reunir a vizinhança em nossa própria rua para algumas exibições públicas de filmes diversos, desde filmes mudos de comédia de Chaplin, que ainda arrancam sonoras risadas do público até os desenhos animados que animam a garotada, mas, observo que o que também chama atenção das pessoas é de fato o barulho característico do projetor e o movimento de seus carretéis. Jadiel, é verdade que nutre o sonho de dirigir um filme? Já teve experiências com produção de cinema? Sim, tenho um sonho de fazer um filme para que as pessoas possam assistir e aprender alguma coisa com meu trabalho. Já tive uma experiência durante as filmagens do documentário Cine Aurélio aqui na cidade, na época trabalhei na captação do som, produção e pesquisa do filme, as atividades coroaram nossa participação no Curso Doc Lab, atividade formativa patrocinada pelo Curta Taquary. Inclusive o filme tem recebido premiações em festivais. Por fim, vocês mantêm contato com outros colecionadores, e se algum leitor ou colecionador desejar manter contato com vocês como fazer? Jadiel: Faço parte, juntamente com Edvaldo de um grupo de WhatsApp de colecionadores e amantes de cinema, onde postamos fotos e trocamos experiências com outros colecionadores do Brasil inteiro. Para fazer parte desse grupo basta entrar em contato comigo pelo meu telefone: 81 99258-3770. Entrevista realizada por João Marcelo.
- Devotos: Mudando a cidade
Este vídeo ensaio faz parte do especial 'Devotos'. Roteiro e Edição: Thallyson Silvestre. Veja mais: Indicação: A cena do Punk Rock Hardcore em Pernambuco pelos olhos do Devotos Relato: Devotos da boa-fé: a fé anarquista!
- Devotos da boa-fé: a fé anarquista!
Relato por Marcus ASBarr. Foi da tenacidade de Nado, memorável e emblemático vocalista da banda crossover¹ Realidade Encoberta, elo forte e inspirador, que me fez mergulhar na ação direta: passei de público a ativista cultural. Com a entrega de panfletos para o III Encontro Anti-Nuclear², ele criou um momento histórico: possibilitou o conhecer do movimento punk em flerte com a ideologia Anarquista. Ver o mundo da angulação do “faça você mesmo” liberta. Inevitavelmente outro enlace ocorreria, pois a trajetória do atual Devotos iniciou neste mesmo momento, naquele mesmo palco e ainda como Devotos do Ódio. Na noite nublada de agosto, fim dos anos 1980, o então “Devotos do Ódio” foi o descortinar da potencialidade do punk, o despertar para novas formas de expressar ideias, de interagir com a sociedade. Não eram contestações vazias, mas algo vívido, sentido, absoluto comprometimento com a conscientização social. Até os cacofônicos sons da aparelhagem precária nos shows suburbanos — característica do punk — não comprometiam e sim ressaltavam o talento e o vigor, que emanava da palavra, e a sinceridade das palavras se verteria em ações para o “transformar do mundo à sua volta”. Respaldo minha narrativa, após mais de três décadas, indicando leitura de duas letras de momentos extremos do Devotos: “Luz da Salvação” e “Incrédulo”. O essencial fica e a palavra liberta! Mas o estreitamento da relação com o Devotos do Ódio seguiu a passos largos. E o primeiro contato direto com a banda não tardaria, pouco depois daquele impacto inicial em meu primeiro show de punk rock — no qual levei um tombo no meio da roda de pogo e saí ileso comprovando que as pessoas estavam ali não para se agredirem, mas para extravasar energia — estive em outros shows, nos quais fiz questão de dar ênfase à banda para Osman Frazão, que me apresentou a cena underground local e por ser mais headbanger demais na época, não esteve III Encontro Anti-Nuclear. Ele é meu primo e juntos, pouco mais de um ano depois, adentraríamos de vez no ativismo cultural que já praticávamos, só que agora com uma chancela: MaOs Contatos, um organismo de intensivo apoio ao cenário... que de duo não tardaria a se tonar solo. Mantive a marca até meados dos anos 1990. Ambos já fãs confessos do Devotos do Ódio, motivados por nossa primeira ação, ter a banda na próxima investida era uma meta. Seria a sequência para o Nordeste Thrash, que se desdobrou em outra ação na qual a banda também estaria em palco: o Não Papai Noel. Ambas foram frustradas. Na memória ficou marcado o dia em que seguimos ao Alto José do Pinho, sem conhecer nenhum integrante da banda, e ao chegarmos defronte ao endereço chegou também a apreensão e um impasse: se chamávamos Cannibal ou não. Então batemos palmas à moda antiga, não sabíamos a relação da família com a participação dele no movimento punk, mas vivenciávamos a situação. Para nossa surpresa, a irmã dele atendeu e de imediato soltou o grito: “CANNIBAL!”. E logo em seguida, o momento que selaria esta relação ocorreria imediatamente após o fracasso da ação Não Papai Noel, pois no dia seguinte já subíamos o Alto José do Pinho novamente, e desta vez esperando ser trucidados. Parecia que a carga de responsabilidade pelo ocorrido pesava toneladas. Encontramos Cannibal —e uma turma que em breve seriam os novos nomes da cena musical do Alto José do Pinho— na primeira esquina da ladeira de acesso. Uma apreensão ainda maior que num instante se dissipou com uma acolhida onde o entendimento e total empatia com a proposta nos colocariam ladeados seguindo no mesmo sentido. Logo no início passamos de fãs na plateia a vivenciar de perto os primórdios da banda. Estávamos em ensaios, em shows, e buscando todo o tempo dar o apoio necessário na difusão. Uma estratégia era ter matérias na mídia de todo e qualquer show. Para tal, produzíamos fotos e enviávamos releases para os principais órgãos de comunicação, com bons resultados em jornais impressos. Mas parece que as ações do MaOs Contatos estavam fadadas a não darem certo com o Devotos do Ódio, pois ainda uma outra ficou registrada como o pior show na memória da banda: o Nordeste Thrashcore, este realizado em Campina Grande, Paraíba. Daí por diante eu nem sabia mais que papel desempenhava na história: eu me tornei amigo, fã, mas não produtor — embora em alguns momentos este papel coubesse a mim por necessidade de uma representatividade. Orientava apenas, não tomava decisões. Assim, sugeri rejeitarem o primeiro contrato proposto para banda por um selo local. Algo complicado, pois podem pensar: “Loucura! A banda não tinha nada naquele momento”. Mas o que se desenhava era algo grande e condizente com o seu talento. Estava já em evidência total e isso foi se avolumando de uma forma que não se poderia mais sufocar. A minha presença constante ao lado da banda ocasionaria me confundirem até como mais um integrante em alguns momentos, embora só uma vez eu estive no palco e o registro é histórico para mim. Posso assegurar que ainda hoje o talento que me levou a apostar alto — e em certos momentos até me deixar um tanto preocupado com a demora de acontecer — continua a me encantar. Revivi alguns desses momentos como editor do livro Música Para o Povo Que Não Ouve, no qual eu assino o singelo capítulo preambular: “Memórias de um devoto”. O livro está no catálogo da Cepe Editora, e foi lançado em 2018. No processo de editoração, a definição dada ao projeto editorial englobou momentos inéditos da banda, registros históricos tanto do meu acervo quanto do próprio Cannibal, e quando recebi o material ainda bruto do último álbum — trilha sonora enquanto desenvolvia a parte de criação artística para composição do livro — estava tudo lá: in natura, mesmo após tantos anos. E algo que me proporciona um imenso orgulho... de fã. Notas do autor: ¹ Crossover é estilo musical, no caso a sonoridade do Realidade Encoberta, em sua formação original, era a junção do punk hardcore e o heavy-metal. ² III Encontro Anti-Nuclear é o nome da histórica movimentação que recebeu três edições reunindo artistas e ativistas de várias partes do país, grafada originalmente como na época. Sobre Marcus ASBarr: @marcusasbarr (BioDiverCidade Produções) é Ativista cultural oriundo do movimento punk. Produtor Cultural, Compositor e Músico Experimental. Atuante no cenário cultural de música, audiovisual e editorial (projetos gráficos e editoriais; Direção de Arte; Designer; Ilustração; Diagramação; Editor de livro e revistas), com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Assina o projeto gráfico e capa da segunda edição do livro "Pesado" (Wilfred Gadelha), e é Editor, prefaciador e capista do livro "Música para o povo que não ouve" (Cannibal), além de ser personagem em ambos. Criador Visual filiado a AUTVIS.
- A cena do Punk Rock Hardcore em Pernambuco pelos olhos do Devotos
Em 1988 nascia a banda pernambucana, Devotos do Ódio (atualmente chamada apenas de Devotos). Formada por Cannibal (voz e contra-baixo), Neilton Carvalho (guitarra) e Celo Brown (bateria), a banda foi uma das principais precursoras do movimento de rock que surgiu em Pernambuco na década de 90. Criada no Alto José do Pinho, bairro periférico de Recife, desde o início da formação, o trio buscava compor letras que denunciavam a desigualdade social, o preconceito e as dificuldade vividas dentro das comunidades. A falta de saneamento, a insegurança, criminalidade, e a pobreza, eram motivos de grandes insatisfações dos moradores do Alto José do Pinho. Então, Cannibal que já participava de passeatas punks e organizava eventos teve a ideia de criar o Devotos e assim denunciar aquela realidade através do que sabia fazer: rock. Devotos faz parte de um grupo que podemos chamar de A consciência da periferia, a voz que cobra melhorias em uma realidade dividida. Ao longo da trajetória, Devotos já lançou oito álbuns em estúdio: Agora tá Valendo (1997), Devotos (2000), Hora da Batalha (2003), Sobras da Batalha EP (2004), Flores com Espinhos, Para o Rei (2006), Póstumos (2012) e O Fim Que Nunca Acaba (2018). Além de um álbum ao vivo em comemoração aos 20 anos da banda, e dois discos de vinil intitulados de Victória (2010) e Demos e Raridades (2011). Um dos grandes sucessos do trio é a música "Eu o declaro inimigo", do álbum O Fim Que Nunca Acaba. O videoclipe da música foi lançada no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), durante a exposição "A arte é um manifesto - 30 anos de Devotos". O clipe tem direção de Marcos Buccini e Thiago Delácio e teve a participação de 127 artistas brasileiros, entre ilustradores, artistas plásticos, designers, animadores e artistas gráficos. No mesmo ano, em comemoração ao aos 30 anos da banda, Cannibal lançou o livro Música Para o Povo Que Não Ouve em parceria com a Cepe Editora. O livro conta a trajetória da banda com fotografias, cartazes de shows, matérias de jornais, e letras de canções inéditas que não chegaram a ser gravadas. Este ano a banda lançou dois singles Nossa História e Orixás: O Rock em Pernambuco O Alto não foi o único lugar de Recife que passava por problemas, vários lugares de Recife viviam e presenciavam uma grande onda de insatisfação e má qualidade de vida. Em 1990, com o declínio econômico no estado, um jornalista do The Washington Posts em passagem por Recife escreveu que a capital pernambucana seria a 4ª pior cidade do mundo para se morar. Pode-se dizer que esse foi um dos gatilhos que gerou um desejo de mudança. Nas palavras de DJ Dolores: "A gente muda de cidade ou a gente muda a cidade. Não temos dinheiro para mudar de cidade, então vamos ter que mudar a cidade". - Fala tirada do documentário Passagens (2019) de Lúcia Nagib e Samuel Paiva. Assim como Devotos, durante a década de 90 surgiram diversas outras bandas que tinham o mesmo objetivo. Nesse período nasce também nomes como Sheik Tosado, Os cachorros, Eddie, Matalanamão, III Mundo, Primeira Dama, Querosene Jacaré, Faces do Subúrbio, Jorge Cabeleira, Comadre Fulosinha, entre outros. Bem como Nação Zumbi e Mundo Livre S&A que tiveram maiores projeções nacionais e internacionais misturando rock e maracatu e falando sobre o mague. Em 1995, Adelina Pontual, Cláudio Assis e Marcelo Gomes se juntaram em um documentário que retratava o dia a dia dos jovens do Alto José do Pinho e como a música mudou suas vidas e a imagem do bairro, antes marcado por sua miséria e marginalidade. A banda Devotos do Ódio, destaque no documentário, foi exemplo, possibilitando mudanças no contexto social do bairro. O filme de 14 minutos firma-se como um registro histórico sobre a cultura marginal do nosso país. O rock pode ter tido origem americana, mas em Pernambuco o ritmo tomou outras faces e foi transformado em um grande mensageiro da realidade e também uma expressão artística de luta e resistência. Acompanhe Devotos nas redes Youtube Instagram Spotify Texto por Hanna Aragão.
- Galeria "A Peleja do Bumba Meu Boi Contra o Vampiro do Meio Dia"
Como um esquenta para exibição especial de "A Peleja do Bumba Meu Boi Contra o Vampiro do Meio Dia", de Lula Lourenço e Pedro Aarão, selecionamos algumas fotos tiradas por Germano Coelho Filho (Still e Produção) dos bastidores do filme. Lembramos que o filme ficará disponível por 24 horas no nosso canal do Youtube. Saiba mais sobre as fotos nas legendas abaixo. 1.Luiz Lourenço e Pedro Aarão com Olegário Fernandes em sua barraca onde vendia cordéis na feira de Caruaru; 2.Mestre Galdino gravando seu depoimento em sua casa/atelier. Edinho Moraes na câmera e Wellington Branco na iluminação, que também fez a personagem de Catirina na parte filmada em Super-8 - Caruaru; 3.Germano Coelho Filho (Still e Produção), Pedro Aarão, Manoel Galdino, Edinho Moraes (câmera), Luiz Lourenço e Bela Leite (assistente de produção) - Caruaru; 4.Mestre Otilio com um mamulengo em sua residência na gravação de seu depoimento e performance para o filme - Caruaru; 5.Exibição do filme em 1988, no Centro Interescolar Luiz Delgado, no Parque 13 de maio - Recife; 6.Feira de Caruaru em 1982; 7.Mestre Gercino em foto da gravação em vídeo do Boi na praça Coronel João Guilherme - Caruaru; 8.Guiga Melo, ator que desempenhou magistralmente o papel do vampiro, na gravação de seu depoimento para o filme.em sua residência fazendo a massa do pão integral que vendia para sobreviver com a família - Caruaru; 9.Foto de cena no circo - Caruaru.
- Um filme histórico e heroico sobre a peleja da cultura popular
Alguns filmes tem a hora, o lugar e as pessoas certas. No início dos anos 80, no agreste pernambucano, dois amigos se uniram a outros amigos e fizeram história com o pouco que tinham ao alcance. ‘A Peleja do bumba-meu-boi contra o vampiro do meio-dia’, dirigido por Luiz Lourenço e Pedro Aarão, ao que tudo indica, é o primeiro filme realizado na cidade de Caruaru, interior de Pernambuco. Tudo começou em 1981 quando as filmagens foram iniciadas na marra com o uso de câmeras Super-8. Por dificuldades técnicas e financeiras, o trabalho foi interrompido e retomado cinco anos depois, agora utilizando também o formato u-matic. Um filme-vídeo histórico e heróico sobre a peleja da cultura popular. Esta é uma possível interpretação para uma obra que desperta curiosidade e muitos significados. Com uma pegada documental e ficcional, A Peleja tem uma proposta ousada e necessária que se reflete nos depoimentos dos artistas populares de Caruaru, e sobretudo, na imagem do vampiro. Logo de cara somos apresentados a uma paisagem escura e repleta de lixo, uma placa traz os dizeres: Terceiro Mundo. É um prenúncio do que está por vir, A Peleja tem uma mensagem direta, simbólica e com margem para muitas interpretações. De forma poética e metafórica, a narrativa traz a cultura popular (o bumba-meu-boi) em um duelo contra os poderes político e econômico (o vampiro). A caracterização do vampiro se assemelha à imagem de Tio Sam, um dos símbolos dos Estados Unidos. O vampiro aparece em várias situações dentro da narrativa - como se quisesse nos lembrar dos inimigos que nos cercam cotidianamente. Ele está nas ruas da cidade, na feira, atacando um senhor na fila do banco, ele tem posses e um aspecto teatral em sua presença marcante. Os depoimentos de nomes históricos da cultura popular são significativos. Mestre Galdino (ceramista e poeta), Antônio Medeiros (ator e diretor), Olegário Fernandes (poeta e editor), Mestre Gercino (bumba-meu-boi), Tavares da Gaita (músico e artesão), Mestre Otilio (mamulengueiro) e Francisco Sales Areda (poeta). Em cada fala um testemunho das dificuldades de quem faz a cultura popular, uma dificuldade do passado que persiste no presente. E como é importante ouvir cada depoimento. A Peleja nos permite ver e ouvir estes mestres e poetas que tinham muito a dizer. O filme é um registro histórico destes personagens e do trabalho realizado por eles, é também um registro histórico de Caruaru, uma cidade que se transformou completamente com o passar dos anos. As cenas do vampiro caminhando pelas ruas da cidade, subindo as escadas e olhando para a feira são memoráveis. A presença de tanta gente com o Boi Tira-Teima na rua, no duelo contra o vampiro, é de arrepiar. Há muito para se emocionar ao assistir ‘A Peleja do bumba-meu-boi contra o vampiro do meio-dia’. Uma das maiores emoções vem da própria existência do filme e da coragem que Pedro e Luiz tiveram para criar uma obra autêntica. A Peleja não existiria com a mesma paixão e verdade pelas mãos de outros diretores. Os dois tinham o olhar e as experiências que a obra necessitava para existir. Eles tinham o sonho de fazer o filme, e hoje, 40 anos depois, o filme ainda nos inspira a sonhar, criar e refletir sobre a nossa cultura. . . Referências: A PELEJA DO BUMBA-MEU-BOI CONTRA O VAMPIRO DO MEIO-DIA. Direção: Luiz Lourenço e Pedro Aarão. Pernambuco: 1986. DVD (30 min) SCHWARZ, Ana. Entrar e sair da tela: uma viagem móvel. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco, Pós-graduação em Antropologia no Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 2002. Texto por Mª Clara Mendes.
- Memórias de um Filme Cult Popular
Por Luiz Lourenço. Em 1981, o Brasil era governado por João Batista de Figueiredo, o 5º general no poder da ditadura militar que durou 21 anos. Nesse período havia censura que impedia a circulação livre de ideias, de peças de teatro, livros e filmes. Pessoas eram sequestradas sumariamente, interrogadas, torturadas e mortas pelo regime militar. Justificava-se que havia uma invasão comunista para tomar o poder político. Na UFPE onde estudei Comunicação Social, engajei-me na luta do movimento estudantil, quando fundamos o Diretório Acadêmico Livre de Comunicação e fui eleito como 1º presidente, em 1979. A ideia de fazer o filme, surgiu a partir do reencontro com Pedro Aarão, que havia passado uma temporada em São Paulo trabalhando com produção de Teatro e música. Havíamos participado do Cineclube Lumière criado por um grupo de intelectuais de Caruaru e presidido por Pedro Aarão. O Centro de Pesquisa e Documentação da Fafica, dirigido pelo sociólogo e professor Ivan Brandão junto com o Cineclube promoveram um curso de como operar câmeras de super-8. Fortemente influenciados pela estética e política do Cinema Novo brasileiro, além de filmes do Neo-realismo italiano de diretores como Fellini, Antonioni, Bertolucci, De Sica, e do novo Cinema alemão como Fassbinder, Schlondorff, Wim Wenders. O processo do filme começou com uma enquete que fizemos na feira de Caruaru, munidos de um gravador cassete, conversando com os feirantes. Partimos então para escrever o roteiro do filme com o mote de uma peleja imaginária do povo contra os poderes local, nacional e internacional. As dificuldades eram enormes, pois não tínhamos fonte renda na ocasião e nem havia políticas, editais nem leis de fomento para a produção cultural. A realização do filme arregimentou artistas de vários segmentos e gerou diversos tipos de reação, quando filmávamos em locais públicos, como por exemplo na frente da igreja da Conceição onde chegamos a ser apedrejados. As dificuldades técnicas surgiram quando filmamos as cenas da peleja cantada e encenada entre o Bumba meu boi e o vampiro a partir dos versos do poeta Francisco Sales Areda e musicados por Jadilson Lourenço. Não tínhamos experiência nenhuma com captação de som direto nem equipamento compatível com o desafio. Essa dificuldade gerou um impasse na hora que partimos para montar o filme porque a qualidade do som captado não tinha inteligibilidade para passar a mensagem que queríamos. Aí houve uma interrupção no processo de feitura do filme. Durante a montagem do filme em Recife que teve a inestimável colaboração de Douglas Tabosa de Almeida, surgiu a possibilidade de trabalhar com audiovisual na Prefeitura de Olinda. Passaram-se então 5 anos até que reuníssemos condições técnicas para gravar em estúdio para dublar as partes cantadas da peleja. Paralelo a isso foi um tempo de redefinição do roteiro do filme quando resolvemos agregar uma parte documental gravada em vídeo. Houve toda uma discussão com os artistas focados para que eles entendessem o processo do filme. Fizemos uma exibição do material até então filmado numa sala de exibição de um videoclube que ficava na av. Agamenon Magalhães. Nós conseguimos locar por uma diária o equipamento da Massangana Vídeo da Fundaj para que num único dia gravássemos todas as participações. A edição do material foi possível na TV Universitária de Recife, onde eu trabalhava e pegava no equipamento em sessões de edição pela madrugada adentro. O filme foi inscrito no Festival do Maranhão e chegou lá no dia da exibição, quando o júri já havia deliberado sobre as premiações e quando viram o filme tiveram que refazer e outorgaram 4 prêmios na estreia do filme. Na sequência o filme participou do I Festival de Vídeo Independente de Fortaleza onde recebeu 3 premiações. Na Bahia, onde o filme participou da jornada Internacional de Cinema e Vídeo, ganhou o Tatu de Ouro de Melhor direção. Fizemos uma sessão de estreia concorridíssima para a classe artística no auditório da Fundação de Cultura de Caruaru e uma outra para o público em geral no Teatro João Lyra Filho. A principal exibição pública que fizemos foi na Feira de Caruaru, na praça Coronel João Guilherme, onde ficava a feira de artesanato na época. Montamos nesse local na noite da sexta até a madrugada do sábado, uma barraca de campanha com televisores para todos os lados exibindo continuamente o filme e fizemos toda uma mobilização com artistas que passaram o dia se revezando em apresentações. Levamos ainda de Recife o tradicional Maracatu Leão Coroado, ainda comandado pelo Mestre Luís de França. Como ainda não havia emissora de TV local em Caruaru, conseguimos que a Rede Globo Nordeste pautasse o evento e deslocasse uma equipe de Jornalismo para exclusivamente cobrir o evento. Houve então uma repercussão bastante importante do filme nessa ocasião. Daí vieram os projetos de circuito de exibição nas comunidades de Caruaru, nas escolas públicas do estado em Recife e seguiu com estrondoso sucesso no projeto Arte nas Praças criado e produzido pelos queridíssimos amigos Prego e Ione, que deu uma grande visibilidade aos artistas participantes. O filme circulou em treinamentos de professores do ensino médio de escolas públicas, em turmas de alfabetização de adultos, em seminários dos Mestrados de sociologia e antropologia da UFPE, foi traduzido e legendado em inglês e espanhol. Gerou uma dissertação de Mestrado em Antropologia na UFPE, pesquisa realizada por Ana Schwartz. 40 anos depois do início dessa história, ao atravessar diversas mudanças tecnológicas na captação/edição de imagens/som, o filme-vídeo precisa de uma restauração pois as sucessivas transcrições de um sistema para outro, provocou uma deterioração das imagens/sons do filme. Sendo muito necessária uma ação restauradora para sua preservação para que ele siga fazendo história. O jornalista e antropólogo Celso Marconi que escrevia sobre cinema numa coluna no Jornal do Commercio classificou “A Peleja do Bumba meu boi contra o vampiro do meio dia como um filme “cult popular” pela circulação alternativa que conseguimos imprimir em vários meios e públicos. Seguiu-se exibições numa sala de vídeo da Fundaj no Derby. Fizemos uma pequena temporada no Cine Bajado em Olinda que ficava no Clube Atlântico de Olinda. Importante ressaltar a participação dos artistas nos debates que se seguiam às exibições. Destaco as presenças muito fortes e desatinadas do Mestre Galdino, Olegário Fernandes e Francisco Sales Areda, que nos debates conseguiam criar maneiras de refletir sobre o filme que iam além dele. Cito ainda outros não menos importantes que deixaram suas marcas em nossas vidas como Mestre Gercino e Dona Lindaura do Boi Tira-teima, Mestre Otílio, Antônio Medeiros, Tavares da Gaita, Carlos Sá, Iran Barreto, Nal, Marconi Edson entre outros. Quero dar um destaque todo especial ao grande amigo e parceiro de todas as horas na produção do filme, o ator Guiga Melo que hoje mora no Norte e que fez brilhantemente o papel do vampiro. Queria também citar o sociólogo e professor Ivan Brandão que foi de inestimável valor, pois sem ele nós não teríamos vencido as barreiras da incompreensão que cercavam nosso trabalho. O padre Pedro Aguiar com seu espírito humanitário nos legou muitas lições. Nosso amigo e parceiro Germano Coelho Filho que fez um still impecável de toda segunda parte do filme. E por fim, mas não por último, precisamos trabalhar filmes que coisas importantes não caiam no esquecimento, e não justifiquem o bordão que “o Brasil é um país sem memória”. Parabenizo o trabalho da equipe da Revista SPIA que provocou quase uma escavação arqueológica para desenterrar um passado que poderia ficar enterrado e esquecido ad infinitum. Ressalto a importância de termos uma universidade pública no Agreste Pernambucano que cumpre seu grande papel de fomentador do desenvolvimento regional e de aglutinador de vivências e experiências. Lutemos por mais verbas para as universidades públicas. E educação, mais educação, sempre educação. É o melhor legado que podemos ofertar para as próximas gerações, contra a ignorância, o obscurantismo e o subdesenvolvimento. Vida longa para a Revista SPIA!