Maryane Martins
Ambiguidade. Corpo. Educação. Raça. Instinto. Etnografia. Linguagem. Antropologia. Identidade. Essas são algumas palavras que norteiam o trabalho do artista Jonathas de Andrade. Nascido em 1982, em Macéio, ele vive e trabalha em Recife, onde se formou em Comunicação Social. Jonathas utiliza suportes variados: instalação, cinema e fotografia. Todos eles têm um ponto em comum: um forte conteúdo político e social, em especial, no contexto latino-americano. Ficção, representação e realidade se misturam nas obras do alagoano, que sempre se interessou pela linguagem (do corpo, da palavra, imagética) como expressão. As pessoas e suas relações, sobretudo de poder e classe, estão presentes e norteiam boa parte da produção do artista. Afetos que passeiam pela crítica histórica, pelo erotismo, nostalgia e na identidade do sujeito, que nos trabalhos de Jonathas, é quase sempre representado pelo corpo masculino. Um dos trabalhos que refletem este último é “O peixe”, um filme cujo enredo poderia ser definido na frase “Homens seminus abraçando peixes”. Mas, é muito mais que isso.
Raízes do mangue e o Rio São Francisco. É no encontro com o mar, entre Alagoas e Sergipe que, por trás da câmera em 16mm, Jonathas de Andrade, nos leva ao ambiente de “O peixe”. A câmera em tons terrosos do diretor, passeia apresentando o espaço e leva o espectador a uma sequência de cenas, em loop. Há um pescador para cada uma delas. Em seus trajes de banho, esses homens guiam suas canoas por entre os mangues, em busca de peixes. Ao invés de matar os animais no momento da captura, os pescadores os confortam, enquanto os peixes morrem lentamente em seus braços. O diretor expõe as imagens sem interferências: não há textos na tela, entrevistas ou diálogos. O som é a vida e a morte, acontecendo juntas, ali.
“O peixe traz um abraço limite.” Um rito de passagem. O homem e o peixe estão em condições de espécie. Presa e predador. É uma relação de dominação. Jonathas traz essa relação de forma contrastada, cheia de ambiguidades. Há uma morte assistida, há afeto, solidariedade e, violência. O diretor faz uma produção etnográfica documental-ficcional. Documental, pois as cenas foram reais, com pessoas reais. Ficcional porque a situação foi dirigida por ele, não espontânea.
Os pescadores cumprem o papel de serem eles mesmos, mas são colocados em uma situação não habitual: de maneira oposta a pegar o peixe e jogá-lo no barco, onde ele se debate até a morte, em “O peixe” essa morte é sentida de perto, acalentada. O pescador pega o animal, o abraça, dá carinho, o sente até o último suspiro. Quando o abraço acontece, o homem percebe o peixe. Aquela morte deixa de ser banal. Há um sentimento diferente ali. Há uma espécie de respeito. Há uma intimidade. Mas, paralelo a isso, há o uso da força, do poder, da dominação. É quase como uma relação da inevitabilidade da força de um sobre o outro. Por isso, a ambiguidade: vida e morte.
Para o espectador, os sentimentos de inquietação, incômodo. É uma produção silenciosa, a imagem, os olhares do peixe, do homem, são carregados de emoção. Há uma relação física, simbólica e, em alguns momentos, quase que erótica entre homem e a natureza. A câmera não foca no momento da pesca, o enquadramento é o toque que eleva o filme, ele nos leva a outro olhar: o de Jonathas. A câmera, quase que desaparece. E quem assiste mergulha naquele ambiente. A imagem é utilizada como vetor de discurso e confronta quem assiste de forma direta e próxima, trazendo um contato profundo com a visão do autor. Além disso, há a relação direta do pescador com a câmera. Alguns vivem aquela situação não-comum, dirigida, com muita naturalidade. Outros, apresentam claro desconforto com a presença do equipamento.
“O peixe” pode ser visto como uma conexão com a natureza, por meio do encontro, da resposta dos corpos que, de forma espontânea respondem a presença um do outro. Se percebem. Há uma subversão no ato de pescar, na banalização da morte daquele animal. Mas, ao mesmo tempo, não deixa de ser uma relação de violência, crueldade. O encontro com a carne. Os olhares que denunciam. “O peixe” é um silêncio que fala.
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