Não há quem seja de Pernambuco e não saiba o que é uma munganga. Se você faz parte dos que não sabem, pernambucano ou não, eu só posso lamentar. E eu lamento lhe escrevendo enquanto faço uma munganga. Voinha diz que se o galo cantar eu vou ficar assim pra sempre. Eu vou explicar melhor. Munganga é uma expressão cômica, uma careta. O que é melhor que um corpo munganguento pra zombar da grande caretice que é a nossa sociedade? Talvez seja daí que nascem as LGBTQ+ nordestinas.
Em experimento munganga.beta o realizador Tiago Lima nos prende numa viagem experimental de 37 minutos com uma performance estonteante da artista Libra. Do começo ao fim, a apresentação da artista é acompanhada de criações digitais que brincam com as formas e texturas do corpo.
Servindo não apenas movimentos de câmera, mas experimentações de replicação, alteração e sobreposições tanto de imagens alheias quanto de partes do próprio corpo, é perceptível a intencionalidade de provocar os corpos em frente a tela.
Essa provocação parece vir do desejo de romper com as formas de se perceber um corpo LGBTQ+, fruto de um contexto em que, para além de um falar sobre, é preciso dar visibilidade às existências e afetos corpóreos de um sujeito queer. A criação de um retrato audiovisual em que hipervaloriza o toque norteado pelo som de um set regado de música eletrônica, um techno poderoso, permite um passeio sinestésico ao espectador que supera os limites da identificação. Ressoa como um conto cheio de referências à história das pessoas LGBTQ+’s.
Quando eu falo de toque, lembro que o cinema pernambucano já retratou corpos e afetos. Foi em 1975 que o famigerado Jomard Muniz de Britto lançou o que hoje se considera um dos primeiros filmes eróticos do estado. Em Toques, Jomard cria uma alegoria que atravessa o tempo para nos mostrar que a liberdade vem antes e depois da repressão. Nesse curta de sete minutos, três corpos aparecem livremente em paisagens naturais em clara referência às Graças. Num contexto de ainda forte repressão policial dos corpos marginais, o famigerado entrelaça a beleza ambígua dos corpos para além de uma união puramente carnal. Tudo isso com a música Pelos Olhos, de Caetano Veloso, como um quarto elemento compondo a obra.
Estando nós num contexto sociocultural mudado, não tem como não notarmos como as obras audiovisuais são produtos do seu tempo. Tiago Lima não esconde suas referências. Ele as reverência. Mas também sabe nos maravilhar com sua performance contemplativa da performance do corpo filmado. Seu olhar potencializa politicamente o corpo de Libra e imprime em tela as particularidades e intimidades da personagem.
Em consonância com o famigerado, Tiago compõe uma obra que utiliza de elementos fílmicos e personagens que questionam as representações, discute as liberdades e o próprio fazer cinema. Porém, diferente daquele, ele nos oferece uma obra analógica em que um corpo que faz caretas é permeado de afetos e que já não quer mais discutir sua existência, ela é real, e agora, é dar visibilidade às histórias que perfuram e completam esse corpo. Uma obra que diz: meu corpo é uma grande munganga para os caretas. E entenda, o LGBTQ+ irá sempre tocar-se, seja como resistência ou ressignificância da sua presença no tempo e no espaço. O que é mais Pernambuco queer que um corpo munganguento?
Referências
JOMARD Muniz de Britto. Disponível em: http://cinematecapernambucana.com.br/diretores/jomard-muniz-de-britto/ . Acesso em: 01 dez. 2020
SARMET, E. ; BALTAR, M. . Pedagogias do desejo no cinema queer contemporâneo. Textura - ULBRA , v. 18, p. 50-66, 2016.
TIAGO Lima. Disponível em: https://tiagovlima.hotglue.me/ . Acesso em: 01 dez. 2020
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