Por Luiz Lourenço.
Em 1981, o Brasil era governado por João Batista de Figueiredo, o 5º general no poder da ditadura militar que durou 21 anos. Nesse período havia censura que impedia a circulação livre de ideias, de peças de teatro, livros e filmes. Pessoas eram sequestradas sumariamente, interrogadas, torturadas e mortas pelo regime militar. Justificava-se que havia uma invasão comunista para tomar o poder político. Na UFPE onde estudei Comunicação Social, engajei-me na luta do movimento estudantil, quando fundamos o Diretório Acadêmico Livre de Comunicação e fui eleito como 1º presidente, em 1979.
A ideia de fazer o filme, surgiu a partir do reencontro com Pedro Aarão, que havia passado uma temporada em São Paulo trabalhando com produção de Teatro e música. Havíamos participado do Cineclube Lumière criado por um grupo de intelectuais de Caruaru e presidido por Pedro Aarão. O Centro de Pesquisa e Documentação da Fafica, dirigido pelo sociólogo e professor Ivan Brandão junto com o Cineclube promoveram um curso de como operar câmeras de super-8. Fortemente influenciados pela estética e política do Cinema Novo brasileiro, além de filmes do Neo-realismo italiano de diretores como Fellini, Antonioni, Bertolucci, De Sica, e do novo Cinema alemão como Fassbinder, Schlondorff, Wim Wenders.
O processo do filme começou com uma enquete que fizemos na feira de Caruaru, munidos de um gravador cassete, conversando com os feirantes. Partimos então para escrever o roteiro do filme com o mote de uma peleja imaginária do povo contra os poderes local, nacional e internacional. As dificuldades eram enormes, pois não tínhamos fonte renda na ocasião e nem havia políticas, editais nem leis de fomento para a produção cultural.
A realização do filme arregimentou artistas de vários segmentos e gerou diversos tipos de reação, quando filmávamos em locais públicos, como por exemplo na frente da igreja da Conceição onde chegamos a ser apedrejados. As dificuldades técnicas surgiram quando filmamos as cenas da peleja cantada e encenada entre o Bumba meu boi e o vampiro a partir dos versos do poeta Francisco Sales Areda e musicados por Jadilson Lourenço. Não tínhamos experiência nenhuma com captação de som direto nem equipamento compatível com o desafio.
Essa dificuldade gerou um impasse na hora que partimos para montar o filme porque a qualidade do som captado não tinha inteligibilidade para passar a mensagem que queríamos. Aí houve uma interrupção no processo de feitura do filme. Durante a montagem do filme em Recife que teve a inestimável colaboração de Douglas Tabosa de Almeida, surgiu a possibilidade de trabalhar com audiovisual na Prefeitura de Olinda. Passaram-se então 5 anos até que reuníssemos condições técnicas para gravar em estúdio para dublar as partes cantadas da peleja. Paralelo a isso foi um tempo de redefinição do roteiro do filme quando resolvemos agregar uma parte documental gravada em vídeo.
Houve toda uma discussão com os artistas focados para que eles entendessem o processo do filme. Fizemos uma exibição do material até então filmado numa sala de exibição de um videoclube que ficava na av. Agamenon Magalhães. Nós conseguimos locar por uma diária o equipamento da Massangana Vídeo da Fundaj para que num único dia gravássemos todas as participações. A edição do material foi possível na TV Universitária de Recife, onde eu trabalhava e pegava no equipamento em sessões de edição pela madrugada adentro.
O filme foi inscrito no Festival do Maranhão e chegou lá no dia da exibição, quando o júri já havia deliberado sobre as premiações e quando viram o filme tiveram que refazer e outorgaram 4 prêmios na estreia do filme. Na sequência o filme participou do I Festival de Vídeo Independente de Fortaleza onde recebeu 3 premiações. Na Bahia, onde o filme participou da jornada Internacional de Cinema e Vídeo, ganhou o Tatu de Ouro de Melhor direção.
Fizemos uma sessão de estreia concorridíssima para a classe artística no auditório da Fundação de Cultura de Caruaru e uma outra para o público em geral no Teatro João Lyra Filho. A principal exibição pública que fizemos foi na Feira de Caruaru, na praça Coronel João Guilherme, onde ficava a feira de artesanato na época. Montamos nesse local na noite da sexta até a madrugada do sábado, uma barraca de campanha com televisores para todos os lados exibindo continuamente o filme e fizemos toda uma mobilização com artistas que passaram o dia se revezando em apresentações. Levamos ainda de Recife o tradicional Maracatu Leão Coroado, ainda comandado pelo Mestre Luís de França. Como ainda não havia emissora de TV local em Caruaru, conseguimos que a Rede Globo Nordeste pautasse o evento e deslocasse uma equipe de Jornalismo para exclusivamente cobrir o evento. Houve então uma repercussão bastante importante do filme nessa ocasião.
Daí vieram os projetos de circuito de exibição nas comunidades de Caruaru, nas escolas públicas do estado em Recife e seguiu com estrondoso sucesso no projeto Arte nas Praças criado e produzido pelos queridíssimos amigos Prego e Ione, que deu uma grande visibilidade aos artistas participantes. O filme circulou em treinamentos de professores do ensino médio de escolas públicas, em turmas de alfabetização de adultos, em seminários dos Mestrados de sociologia e antropologia da UFPE, foi traduzido e legendado em inglês e espanhol. Gerou uma dissertação de Mestrado em Antropologia na UFPE, pesquisa realizada por Ana Schwartz.
40 anos depois do início dessa história, ao atravessar diversas mudanças tecnológicas na captação/edição de imagens/som, o filme-vídeo precisa de uma restauração pois as sucessivas transcrições de um sistema para outro, provocou uma deterioração das imagens/sons do filme. Sendo muito necessária uma ação restauradora para sua preservação para que ele siga fazendo história. O jornalista e antropólogo Celso Marconi que escrevia sobre cinema numa coluna no Jornal do Commercio classificou “A Peleja do Bumba meu boi contra o vampiro do meio dia como um filme “cult popular” pela circulação alternativa que conseguimos imprimir em vários meios e públicos.
Seguiu-se exibições numa sala de vídeo da Fundaj no Derby. Fizemos uma pequena temporada no Cine Bajado em Olinda que ficava no Clube Atlântico de Olinda. Importante ressaltar a participação dos artistas nos debates que se seguiam às exibições. Destaco as presenças muito fortes e desatinadas do Mestre Galdino, Olegário Fernandes e Francisco Sales Areda, que nos debates conseguiam criar maneiras de refletir sobre o filme que iam além dele. Cito ainda outros não menos importantes que deixaram suas marcas em nossas vidas como Mestre Gercino e Dona Lindaura do Boi Tira-teima, Mestre Otílio, Antônio Medeiros, Tavares da Gaita, Carlos Sá, Iran Barreto, Nal, Marconi Edson entre outros.
Quero dar um destaque todo especial ao grande amigo e parceiro de todas as horas na produção do filme, o ator Guiga Melo que hoje mora no Norte e que fez brilhantemente o papel do vampiro. Queria também citar o sociólogo e professor Ivan Brandão que foi de inestimável valor, pois sem ele nós não teríamos vencido as barreiras da incompreensão que cercavam nosso trabalho. O padre Pedro Aguiar com seu espírito humanitário nos legou muitas lições. Nosso amigo e parceiro Germano Coelho Filho que fez um still impecável de toda segunda parte do filme.
E por fim, mas não por último, precisamos trabalhar filmes que coisas importantes não caiam no esquecimento, e não justifiquem o bordão que “o Brasil é um país sem memória”. Parabenizo o trabalho da equipe da Revista SPIA que provocou quase uma escavação arqueológica para desenterrar um passado que poderia ficar enterrado e esquecido ad infinitum. Ressalto a importância de termos uma universidade pública no Agreste Pernambucano que cumpre seu grande papel de fomentador do desenvolvimento regional e de aglutinador de vivências e experiências. Lutemos por mais verbas para as universidades públicas. E educação, mais educação, sempre educação. É o melhor legado que podemos ofertar para as próximas gerações, contra a ignorância, o obscurantismo e o subdesenvolvimento. Vida longa para a Revista SPIA!
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