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Hilton Lacerda: cinema, liberdade e a pluralidade do Cinema Pernambucano

Foto do escritor: Hanna AragãoHanna Aragão

Atualizado: 25 de fev. de 2021

Através de Tatuagem, primeiro longa-metragem lançado em 2013, Hilton carimba sua marca registrada, autenticidade e inquietude.

Foto: Vítor Jucá

Hilton Lacerda é roteirista e diretor de filmes consagrados em Pernambuco e no Brasil. Entre suas obras mais famosas estão Amarelo Manga (2002) e Árido Movie (2005), como roteirista; e Baile Perfumado (1997), como co-roteirista junto com Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Desde o seu lançamento, Baile Perfumado é tido como um marco da retomada do Cinema Pernambucano.

Nascido em Recife, iniciou suas atividades no audiovisual atuando como assistente de direção e co-roteirista. Nos anos 90, formou com Helder Aragão (Dj Dolores) a dupla Dolores & Morales, responsável pela direção de vários videoclipes da cena Manguebeat, de bandas pernambucanas como Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Mestre Ambrósio.


Em 2013 lançou seu primeiro longa-metragem de ficção Tatuagem, que trata da história de uma trupe de teatro vivendo, em plena ditadura militar, de arte em busca de liberdade. Através de Tatuagem, Hilton carimba sua marca registrada: autenticidade e inquietude. Marca essa que também se faz presente na sua mais recente produção, Fim de Festa, lançado em março de 2020. Mais uma vez a obra de Hilton provoca o espectador e traz à tona um sistema político social falho.


Hoje, o cineasta é um dos personagens que representam essa leva de artistas responsáveis por dar vida ao Cinema Pernambucano ou ao cinema produzido em Pernambuco. Hilton conversou com a Spia sobre cinema, liberdade, o manguebeat, e a parceria de longa data com Cláudio Assis.


Como é que você está? Como tem sido conviver com a pandemia?

"Tenho tido a impressão que esses últimos tempos a vida se tornou meio que uma prisão. No meu caso, eu tive a sorte de estar finalizando uma série. A gente filmou no final do ano passado a série Chão de Estrelas, e começamos a montar antes das coisas pararem. Terminamos fazendo uma montagem virtual, se alongou muito, mas deu certo e terminou ocupando todo o meu tempo. Fora isso eu estou me sentindo meio em suspensão, mas nada em particular. Acho que todo mundo deve estar com sensações parecidas, pelo menos as pessoas mais interessantes."

Assisti sua obra mais recente, Fim de festa, e acho que todo mundo ainda está com aquela sensação de ressaca pós carnaval.

"O Fim de festa é muito metafórico nesse sentido, fala muito sobre o final de um tempo ou um prenúncio de alguma coisa, mas dá essa sensação de suspensão de apreensão, eu, pelo menos não estou confortável com o mundo."

Você é muito importante para o Cinema Pernambucano, esteve à frente de grandes obras tidas como referência para esse cinema, então eu começo perguntando para você qual a principal característica do Cinema Pernambucano?

"Quando eu vou falar sobre as características do cinema Pernambucano, uma coisa que me deixa muito feliz é dizer que ele não tem uma característica de conter formalmente um conteúdo fácil de você captar. É um cinema muito plural, que vem de muitas fontes e principalmente de uma classe média que começou a reproduzir história, acho que isso é um dado muito importante.

Tatuagem foi o primeiro longa do diretor, lançado em 2013 - Foto: internet

Mas quando a gente começa a procurar o que talvez dê unidade a isso [Cinema Pernambucano] o que eu sempre respondo, e que acho que seja a coisa mais característica desse cinema, seja o fato do cinema ter criado um modo de produção, um modo de produzir muito característico que se não tivesse sido inventado ele não teria essa multiplicidade de informação.

Se a gente fosse responder a uma maneira de produzir, que fosse a maneira de produzir exportada desses centros produtores de cinema como Rio e São Paulo, provavelmente tivéssemos uma produção muito menor, que não tivesse impacto e talvez nem conseguisse alavancar. A principal coisa foi inventar essa fórmula de produção que meio que descolonizou um pouco a maneira de se enxergar o cinema como era feito, mas também a maneira de se enxergar dentro desse cinema, uma maneira de passar a escrever uma nova possibilidade de produção audiovisual que é importante para Pernambuco, mas que foi importante para o Brasil também."


Percebo isso quando a gente pesquisa “Filmes nacionais importantes” e existe uma porcentagem pernambucana ali que é vista como referência para outros filmes tão singulares quanto os nossos.

"Pois é, singulares é uma boa palavra. Poderia existir um tipo de cinema que se repete, de maneira criativa, mas que se repete como uma música. Isso tem muito a ver com a música. O movimento Manguebeat tem na linha de frente Chico Science e Nação Zumbi junto com Fred Zero 4 e o Mundo Livre S&A, são duas bandas que cresceram juntas, mas completamente diferentes. Na verdade, o Manguebeat não era um ritmo, era uma proposta de movimento que cabia muita coisa, tanto que depois começaram a colocar tudo dentro do mesmo saco e tudo era Manguebeat."

O Manguebeat foi um movimento que surgiu no Recife e ficou muito popular no Brasil todo, mas eu percebo que ele só cresceu na região metropolitana. Você acha que faltou alguma coisa para ele se expandir para outras regiões do Estado?

"A resposta do próprio Estado em relação ao que era produzido demorou muito, essa resposta dentro de Pernambuco quando aconteceu, estou falando ali em 1994/95, veio por um respaldo feito pela Folha de São Paulo pela surpresa que eles [Chico Science e Nação Zumbi] causaram quando foram fazer um show em São Paulo. E aí tiveram um núcleo de pensadores ali que viram e disseram “ - Nossa, finalmente apareceu um movimento musical outra vez no Brasil”.

A recepção local antes disso era muito pequena e depois começou como acontece muito em Pernambuco, começou um certo orgulho por qualquer coisa, mesmo que você não saiba o que é. Eu garanto a você que o orgulho pelo Cinema Pernambucano é maior do que o número de filmes que saíram, tem gente que provavelmente não assistiu nenhum filme produzido aqui, ou se viu não conseguiu entender porque tem uma mente muito estreita no sentido de ser tão colonizado que não consegue perceber o que esses filmes querem dizer.

Acho que quando a gente fala nisso hoje é porque talvez o Manguebeat já tenha cumprido uma função de fato. Naquele momento era uma coisa importante, você via que as periferias mandavam algum tipo de recado, periferias especificamente do Recife. E de uns tempos pra cá, essas coisas se diluíram e acho que hoje falte um pouco dessa memória, dessa memória que é muito curta, principalmente nesses municípios periféricos que são muito facilmente bombardeados por informações de outros lugares, eles estão muito mais preocupados se estão em dia em um contexto universal, do que na verdade entender o que você pode criar a partir desse movimento."

O passinho das malocas se encaixa um pouco nisso?

"Pode ser, mas acho que o movimento do Brega Funk aqui em Recife pode se encaixar melhor. É um movimento incrível, periférico e o passinho está relacionado a isso, são movimentos que conversam entre si, bebem de outras fontes mas se conversam. O que eu acho mais interessante é esse distanciamento no sentido de você entender como essas escolas são importantes como forma de você observar a narrativa, como no cinema. Quando eu observo a produção de Super 8 na década de 70, o que me vem na cabeça não é reproduzir o que eles fizeram, mas que informação existe ali que eu gostaria, a partir de um ponto de vista muito específico, de recontar, de um ponto de vista narrativo que fosse meu.

Nesse sentido eu tenho uma visão de cinema, digamos menos anárquica do que seria uma visão produzida pelo pensamento dos super oitistas pernambucanos. Claro que dentro disso que eu estou propondo não é um cinema comportado, pelo contrário, é um cinema com uma má educação incrível. Uma das coisas que eu acho engraçada é que essa falta de educação do cinema, eu acho que a gente ter desenvolvido narrativa a partir de discussões e de percepção terminou dando uma certa liberdade, você não tinha muito medo de não oferecer respostas a certas coisas que eram consideradas regras ou leis."

"Se eu chamo dois homens pra fazer um papel que eles vão se pegar isso causa constrangimento, mas se eu coloco um ator para dar um tiro na cabeça do outro isso não parece ser um problema, parece uma gratuidade muito grande a violência, mas quando a gente fala sobre a liberdade do corpo e principalmente se esse corpo está coberto de afetividade é mais grave ainda."

Acho que uma característica que representa essa “falta de educação” é a falta de pudor nos filmes produzidos aqui.

"Pra mim o pudor faz parte desse mundo colonizado que a gente vive. Eu sempre falo isso, como um corpo constrange e como uma arma não constrange? Falava isso com os atores de Tatuagem: “ - A gente não vai ficar explorando a nudez de ninguém, mas ela não é uma questão no Tatuagem”.

O corpo é uma arma de liberdade o tempo inteiro, dos personagens, da própria narrativa e em determinado momento eu pensava, se eu chamo dois homens pra fazer um papel que eles vão se pegar isso causa constrangimento, mas se eu coloco um ator para dar um tiro na cabeça do outro isso não parece ser um problema, parece uma gratuidade muito grande a violência, mas quando a gente fala sobre a liberdade do corpo e principalmente se esse corpo está coberto de afetividade é mais grave ainda.

Em “Fim de Festa”, é engraçado porque as pessoas ficavam constrangidas até com o que não ia acontecer, as pessoas ficavam constrangidas com uma relação afetiva de pai e filho e achando que no final eles iriam terminar transando e você percebe como a cabeça das pessoas está tão levada a isso que ela começa a ver coisas que não existem. Leva a crer que a afetividade incomoda bastante, é muito impressionante isso."

"Existia a ambição dos meninos que faziam aquela cena, de ter um resultado daquilo, mas ao mesmo tempo era uma ambição muito, não vou dizer ingênua por que ninguém era ingênuo, mas você não sabia exatamente o que era."

Você foi muito próximo do pessoal que fez a cena do Manguebeat nascer e foi responsável pela direção de alguns clipes de Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S&A e Mestre Ambrósio, como foi participar daquilo?

"Obviamente que existia a ambição dos meninos que faziam aquela cena, de ter um resultado daquilo, mas ao mesmo tempo era uma ambição muito, não vou dizer ingênua por que ninguém era ingênuo, mas você não sabia exatamente o que era. Obviamente o manguebeat era um projeto de tomar posição, mas ninguém sabia o tamanho que isso ia ter, a gente acreditava, mas não tinha noção da proporção.


E aí vem uma coisa que eu acho muito importante, o conceito desse pensamento de cosmopolitismo. Essa ideia que as pessoas confundem cosmopolitismo com absorção de informação apenas. Na verdade, a ideia que eu tenho de ser cosmopolita é de você participar com a ideia que você cria, você ouvir tudo que todo mundo produz não é cosmopolita, se chama consumidor. E naquele momento acho que a gente tinha muita vontade de estar no centro dos acontecimentos, de discutir. Estávamos falando de um mundo que estava começando a se abrir, principalmente essa nova estrada que se abria, o mundo eletrônico e que eram capitaneados que vinham desde dos anos 70 e que marcaram muito essa geração. Você vê que por exemplo a pegada dos tambores de Chico com o maracatu estavam muito mais interessadas em entender o Hip Hop e o punk rock, do que fazer uma libação com as coisas ancestrais, existia uma coisa além."


Clipe de Maracatu Atômico foi dirigido por Hilton e DJ Dolores - Foto: Internet

Você acha que essa visão cosmopolita que o mangue trouxe também está dentro do cinema?

"Sim! Antes do Baile Perfumado vieram três curtas que já traziam essa ideia o “Cachaça” (Adelina Pontual), “That’s a lero lero” (Lírio Ferreira) e “Maracatu Maracatus” (Marcelo Gomes), principalmente o Cachaça e Maracatus Maracatus, estão conversando com essa ideia da musicalidade que estava sendo criada aqui em Pernambuco. Eles veem de duas vertentes muito diferentes, mas se encontram, numa tentativa cosmopolita de conversar com o mundo. Não foram movimentos dependeram um do outro, inclusive, eu senti eram duas correntes muito diferentes que terminaram uma ajudando a outra.

Acho que o Baile Perfumado você vê um exemplo muito prático, no Baile você vê um monte de características no sentido de como pensar o cinema que não foi uma escolha aleatória, foram parte de um processo de amadurecimento. Obviamente partia de um desejo, de uma história, mas a partir disso a história ia se cobrindo de alguns fatos que eram relevantes como o gênero, fazer uma ideia de retomada do cinema era muito caro ao cinema brasileiro e que as pessoas caricaturavam demais que era o cangaço.

Uma coisa que eu nunca entendi quando dizem que só fazem filme de cangaço, e eu queria saber onde as pessoas assistem tanto filme de cangaço, se fez muito pouco filme de cangaço para o número de histórias que a gente tem sobre o gênero."

Tive a impressão que o Baile Perfumado é muito parecido com Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa, teve alguma inspiração vinda do livro?

"Engraçado, não teve nenhuma (...). Talvez até intuitivamente possa ser que isso esteja jogado. Mas a coisa que mais movimentava a gente no sentido de fazer um filme com o Baile Perfumado era poder fazer uma história onde você tivesse muito livre, porque você tinha uma história que era verdadeira, mas você vê o baile ele é na verdade um making-of de uma filmagem. Ninguém sabe como foi, Abraão não deixa muitos dados de como foi. Então a gente ficava livre para criar todas essas associações.

Então como exercício narrativo de linguagem talvez fosse mais engraçado imaginar que a gente quis fazer um filme documentando um processo que não foi visto. Talvez aí se encontre com Grande Sertão Veredas, porque o livro não é apenas uma narrativa romântica sobre um personagem, ele quebra um personagem e recorta ele dentro de um ambiente onde aquilo tá acontecendo. É como se fosse 'tô documentando uma ficção'."

Baile Perfumado é considerado um marco da retomada do cinema pernambucano - Foto: internet

Você tem uma parceria de longa data com Cláudio Assis, e parecem ser meio diferentes, como é que funciona o trabalho de vocês dois juntos?

"Tem uma coisa que é você entender de onde é que vem o que te estimula a fazer as coisas. Minha parceria com Cláudio vem muito de um desejo narrativo que eu tenho. Minhas ideias passam sempre por um processo narrativo. Às vezes fico discutindo com Cláudio, ele tem uma ideia, mas a ideia fica muito distante daquilo que eu acho que funciona.

E aí eu tenho uma liberdade total com Cláudio. O jeito dele filmar te dá uma liberdade muito grande, porque ele não se intromete muito, é uma questão de cumplicidade, quando as coisas se complementam.

Eu fico muito presente nos filmes de Cláudio, tirando Piedade porque eu estava muito ocupado, fiquei muito pouco tempo, mas geralmente fico o set o tempo inteiro, conversando com a arte (direção), com os atores. É um trabalho conjunto, ele começou conjunto, tende a ser conjunto. Um trabalho de construção de um pensamento. Eu e Cláudio somos bem diferentes, até a forma de narrar o mundo."

Piedade é sua obra mais recente com ele, como foi o processo de construção desse filme?

"Piedade é um projeto muito longo, o roteiro tem uma dimensão que eu gosto muito no sentido do amadurecimento de Cláudio. Eu dizia muito: “Cláudio, você precisa contar histórias que as histórias não se protejam somente nos personagens”. A própria história precisa ter uma narrativa, acho que ele ficava muito receoso de não dar conta desses fluxos que a história tem que ter.

Piedade foi lançado em junho deste ano pelo site do Espaço Itaú de Cinema - Foto: internet

No Piedade o que eu vejo é um filme que foi escrito a partir de um preceito muito específico, que estava ali na própria história de Cláudio. Há muito tempo eu dizia a ele para escrever sobre isso e quando eu falo escrever sobre alguma coisa não é contar a história do que aconteceu, é você se aproveitar de um fato que aconteceu na sua vida e transformar isso numa narrativa. O Piedade era isso, a história de um irmão de Cláudio que tinha sido roubado da maternidade quando era criança e ele descobriu depois esse irmão.

A base da história era essa no início, tinha um pouco a ver com a história de Cláudio. Tanto que a mãe dele ficava lá nas filmagens conversando com Fernanda Montenegro, não tinha nada a ver com o filme, mas era interessante ver o encontro das duas, elas tem quase a mesma idade. Dentro disso você fazer uma leitura de mundo, dessa cidade fictícia é Piedade. Eu acho um passo muito maduro no cinema de Cláudio."

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Você tem produzido ou pensado algum projeto futuro?

"Eu tô finalizando uma nova série pro Canal Brasil que se chama Chão de Estrelas, que é uma espécie de (que nome ridículo) spin-off do Tatuagem. a gente pega o nome do grupo de teatro mas é contemporâneo. E o Magiluth (grupo de teatro de Recife) me ajudou muito nesse processo. São sete episódios de 50 minutos, é uma série muito longa. É incrível, eu estou muito feliz com o resultado. As encenações, tem muito a ver com a ocupação dos espaços, o lugar da arte, destruição da arte, isso é o que acaba me excitando. Fora isso estou escrevendo outras séries, pensando um terceiro filme, uma terceira ficção depois do Fim de festa. Como se fosse um terceiro momento de perceber narrativamente esse mundo, levando em consideração que se por um lado a minha mente tá muito super excitada com tudo que acontece, no sentido de opinião, mas me sinto um pouco cansado de como as coisas estão lidando, meio esgotado."


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